A palavra que mais li no livro foi: muss es sein? ou es muss sein, tem que ser. (que parece 37 vezes durante todo o livro!)
Curti muito o comecinho do livro, aqui esta essa parte:
Primeira Parte
O PESO E A LEVEZA
O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu
dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu
se há-de repetir outra vez e que essa repetição se há-de repetir ainda uma e
outra vez, até ao infinito! Que significado terá este mito insensato?
O mito do eterno retorno diz-nos, pela negativa, que esta vida, que há-de
desaparecer de uma vez por todas para nunca mais voltar, é semelhante a uma
sombra, é desprovida de peso, que, de hoje em diante e para todo o sempre, se
encontra morta e que, por muito atroz, por muito bela, por muito esplêndida que
seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor não têm qualquer sentido. Não
vale mais do que uma guerra qualquer do século XIV entre dois reinos
africanos, embora nela tenham perecido trezentos mil negros entre suplícios
indescritíveis.
Mas algo se alterará nessa guerra do século XIV entre dois reinos africanos se,
no eterno retorno, se vier a repetir um número incalculável de vezes?
Sem dúvida que sim: passará a erguer-se como um bloco perdurável cuja
estupidez não terá remissão.
Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, a historiografia francesa
orgulhar-se-ia com certeza menos do seu Robespierre. Mas, como se refere a
algo que nunca mais voltará, esses anos sangrentos reduzem-se hoje apenas a
palavras, teorias, discussões, mais leves do que penas, algo que já não
aterroriza ninguém. Há uma enorme diferença entre um Robespierre que
apareceu uma única vez na história e um Robespierre que eternamente voltasse
para cortar a cabeça aos franceses.
Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva em
que as coisas não nos aparecem como é costume, porque nos aparecem sem a
circunstância atenuante da sua fugacidade. Essa circunstância atenuante
impede-nos, com efeito, de pronunciar um veredicto. Poderá condenar-se o que é
efémero? As nuvens alaranjadas do poente iluminam tudo com o encanto da
nostalgia; mesmo a guilhotina.
Não há muito, eu próprio me defrontei com o fato: parece incrível mas, ao folhear
um livro sobre Hitler, comovi-me com algumas das suas fotografias; faziam-me
lembrar a minha infância passada durante a guerra; diversas pessoas da minha
família morreram nos campos de concentração dos nazistas, mas o que eram
essas mortes comparadas com uma fotografia de Hitler que me fazia lembrar um
tempo perdido da minha vida, um tempo que nunca mais há-de voltar?
Esta minha reconciliação com Hitler deixa entrever a profunda perversão inerente
ao mundo fundado essencialmente sobre a inexistência de retorno, porque nesse
mundo tudo se encontra previamente perdoado e tudo é, portanto, cinicamente
permitido.
2
Se cada segundo da nossa vida tiver de se repetir um número infinito de vezes,
ficamos pregados à eternidade como Jesus Cristo à cruz. Que ideia atroz! No
mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável
responsabilidade. Era o que fazia Nietzsche dizer que a ideia do eterno retorno
é o fardo mais pesado (das schwerste Gewicht).
Se o eterno retorno é o fardo mais pesado, então, sobre tal pano de fundo, as
nossas vidas podem recortar-se em toda a sua esplêndida leveza.
Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela?
O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas,
na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o
fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo mais pesado é também, ao mesmo
tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto
mais pesado
for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e
verdadeira é.
Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne
mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o
semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes.
Que escolher, então? O peso ou a leveza?
Foi a questão com que se debateu Parménides, no século VI antes de Cristo.
Para ele, o universo estava dividido em pares de contrários: luz-sombra;
espesso-fino; quente-frio; ser-não ser. Considerava que um dos pólos da
contradição era positivo (o claro, o quente, o fino, o ser) e o outro, negativo. Esta
divisão em pólos positivos e negativos pode parecer de uma facilidade pueril.
Excepto num caso: o que é positivo: o peso ou a leveza?
Parménides respondia que o leve é positivo e o pesado, negativo. Tinha razão ou
não? O problema é esse. Mas uma coisa é certa: a contradição pesado-leve é a
mais misteriosa e ambígua de todas as contradições.
(lelivros.com)
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